O Incenso no Taoísmo
O incenso ocupa um lugar central no taoísmo como veículo de conexão entre o humano e o divino. Os registros históricos remontam à Dinastia Shang (1600-1046 a.C.), onde já se queimavam madeiras aromáticas como cânfora e cipreste em rituais de comunicação com os ancestrais. Nos ossos oraculares desse período encontra-se os primeiros registros desta prática. Mas essa prática é anterior a registros, obviamente.
Fragmento de osso oracular, MET Museum
Na verdade, poucos citam que o Taoísmo, antes de ser Taoísmo, é o resultado de anos de práticas de diversas religiões xamânicas de povos indígenas na Antiga China. Não é à toa que o Taoísmo é animista. As muitas linhagens existentes dentro do Taoísmo vêm dessa diversidade.
Os ritos em linhagens mais ortodoxas, que são as que estou envolvida, iniciam-se com cânticos destinados ao Incenso, como na linhagem Zheng Yi, da Sociedade Taoista do Brasil, presente em São Paulo e Rio de Janeiro, e na Quanzhen Longmen, do Templo Pureza e Silêncio, em Goiânia.
No Cânone Taoista, Edição por Kristofer Schipper and Franciscus Verellen, pág. 962: “The incense is the means for communicating with Heaven”. Tradução: “O incenso serve como meio de comunicação com o Céu.”.
Antes de convocar as divindades durante os ritos, é preciso construir uma ponte a partir da oferenda do Incenso. Sem isso, é como se as súplicas dos discípulos não chegassem ao Céu. A oferenda no Taoísmo é um ato físico, Yang, que traz para a matéria um sentimento invisível, Yin.
Imagem: Cerimônia da linhagem Zheng Yi
Além do uso do incenso em rituais, há também a prática do Caminho do Incenso, onde se ritualiza a prática para treinar o coração. Uma vez exercitando esta prática com calma, suavidade e técnica, a ansiedade vai se dissolvendo ao longo da caminhada. Esta prática ficou muito famosa durante a Dinastia Song, que é muito conhecida pela “sistematização” de práticas “cultas”, como o Incenso, Poesia e Caligrafia. É uma prática comum também no Japão, conhecida lá como “Kōdō” (香道).
Imagem: Ilustração de um “método” de realizar a cerimônia do incenso
Imagem: Cerâmicas Boshan ainda são vendidas hoje em lojas de antiguidades. Muitas pessoas que praticam a cerimônia do Incenso utilizam cerâmicas desta época. São muito exuberantes!
Cada aroma planta, com seu aroma, possui propriedades específicas: o agarwood (chénxiāng 沉香) para desbloquear a energia estagnada, o sândalo (tánxiāng 檀香) para acalmar o espírito, a artemísia (ài yè 艾叶) para purificação. Esses conhecimentos foram minuciosamente registrados em obras como o Xiang Pu (Manual dos Aromas) da Dinastia Song, que catalogava dezenas de fórmulas. Além disso, o conhecimento das ervas foram estudados durante séculos por diversos fitoterapeutas, que fundamentaram o conhecimento que temos hoje dentro da fitoterapia chinesa. Cita-se Shennong, Sun Simiao e Li Shizhen, e este primeiro vai estar presente no post da próxima segunda-feira, dia 28.
No Yi Jing (I Ching), o trigrama Xun (巽), o Vento, nos ensina uma sabedoria profunda sobre os incensos. Não vemos o vento, mas o resultado da sua manifestação. Não vemos as preces e a limpeza que ele faz, mas vemos a fumaça que ascende aos Céus. O vento, em sua natureza sutil, penetra lentamente em tudo, objetos, corpos, mentes. Assim, os limpa com muita facilidade.
A Perfumaria na Antiga China
Além dos templos, a cultura do perfume impregnou a vida cotidiana na China antiga. Desenvolveram-se técnicas sofisticadas de perfumaria, como a defumação de roupas com resinas aromáticas ou o uso de bolsinhas perfumadas contendo misturas de especiarias e ervas medicinais.
《东京梦华录》 (Dreams of Splendor of the Eastern Capital, 1147)¹
Manual da Dinastia Song detalha:
Quartos especiais para defumar roupas com chénxiāng (agarwood) e tánxiāng (sândalo) antes de festivais.
Um antigo artigo do China Daily² (2007) oferece uma descrição das atitudes chinesas em relação aos aromas:
"No passado, o incenso era muito mais popular do que hoje. Era comum, especialmente entre as famílias nobres, colocar queimadores de incenso em suas casas e até mesmo próximos às camas. Antes de sair de casa, os nobres perfumavam suas roupas com incenso para desfrutar de uma fragrância agradável durante todo o dia."
"De acordo com livros clássicos chineses, poemas, pinturas e antiguidades, as mulheres preocupadas com a moda usavam néctares destilados de flores como lírio, lótus e crisântemo. Todas as manhãs, aplicavam algumas gotas desses néctares, que as mantinham perfumadas o dia inteiro."
"Também era comum que famílias de alta posição convidassem amigos para apreciar tipos especiais de incenso. Essas reuniões eram tão populares quanto as festas de karaokê nos dias atuais."
Túmulos de Mawangdui (Dinastia Han, séculos II-I a.C.)³
Bolsas aromáticas foram encontradas junto a túmulos, evidenciando práticas de perfumaria.
xiāngnáng encontrados no túmulo da Senhora Dai - Referência: Death Scent⁵
“Os xiāngnáng foram colocados nas mãos da Senhora Dai como um conforto aromático para seu espírito, talvez para protegê-la dos odores da decomposição. Eles a resguardariam contra forças malignas e a auxiliariam em sua jornada espiritual para o reino celestial.”
Os antigos valorizavam a colheita de flores e ervas aromáticas, carregando-as consigo para purificar seu ambiente e corpo. Na maioria dos casos, as ervas eram secas e colocadas em bolsas de seda decorativas, usadas como adorno pessoal que liberava fragrâncias suaves.
incensário encontrado no túmulo da Senhora Dai - Referência: Death Scent
“Entre os objetos funerários da Senhora Dai também estava um queimador de incenso pré-carregado com galangal (Alpinia officinarum), capim-doce (Hierochloe odorata) e orquídea-de-jade (Jadeonia spp.), prontos para serem queimados.”
Silk Road Perfumery (Hansen, 2012)⁴
"Sachets de seda com cânfora e jasmim eram pendurados em roupas íntimas da nobreza Tang para higiene e status"
Dinastia Qing, século 19, Wikipédia
Conclusão
A Perfumaria e a Incensaria foram artes imperiais, da elite, símbolos de status. Até hoje, a sua maneira, sim? Não apenas beneficiando a elite através do perfume, mas das propriedades cosméticas que as resinas possuem, como a de rejuvenescimento da Mirra. Mas não só, também usava-se o conhecimento das ervas para a saúde, queimar ervas aromáticas podia remover a umidade do ambiente, afastar insetos e purificar o ar.
Por isso sempre comento com meu companheiro e amigos: hoje vivemos como reis. É muito fácil ter acesso a múltiplas matérias-primas, e muito acessíveis também em termos de preço.
Em minha prática com incensos artesanais, inspiro-me profundamente nestas tradições. Utilizo resinas como breu branco e outras plantas nativas, assim como ervas descritas em compêndios de Matéria Médica, como o ruibarbo, casca de tangerina, a mirra, o olíbano, o alecrim e outros, sempre seguindo os princípios de equilíbrio energético.
Quando acendemos um incenso, participamos de um ritual ancestral que limpa miasmas nos nossos pensamentos, clarifica as emoções e dissipa más energias dos ambientes em que habitamos. Com isso, nossa vida é transformada, porque retiramos o que não é nosso, desturvamos nossa percepção, nos energizamos para viver o dia, e abrimos os caminhos para trilhar a nossa jornada individual de maneira livre e purificada. Assim, fica mais fácil alcançar nossos sonhos e lutar contra o capitalismo, né?
Para conhecer mais sobre meus incensos, clique no botão abaixo:
¹ Referência: Meng, Y. (1147). Record of the Splendors of the Eastern Capital;
² Referência: http://www.chinadaily.com.cn/ezine/2007-05/18/content_875434.htm;
³ Referência: Hunan Provincial Museum (1974). Excavation Report of Mawangdui Han Tombs;
⁴ Referência: Hansen, V. (2012). The Silk Road: A New History. Oxford UP, p. 187;
⁵ Referência: https://deathscent.com/2023/04/13/lady-dai/
Fico por aqui. Na próxima segunda-feira, às 15h, falarei especificamente sobre a importância da fitoterapia chinesa para os meus incensos.
Um grande abraço,
Ana da Camélia Dourada